Criado nos bailes funks das favelas cariocas no início dos anos 2000, o passinho foi reconhecido oficialmente, no último dia 20, como patrimônio cultural do Rio. A decisão da Câmara Municipal veio com a aprovação do projeto de lei Nº 390/2017, da vereadora Verônica Costa (MDB). A medida estabelece que o órgão de preservação do patrimônio da cidade passa a zelar pelo passinho e que o Poder Executivo local agora tem o dever de apoiar iniciativas de valorização e divulgação da dança.
“O reconhecimento por parte do poder público, tornando-o [o passinho] patrimônio cultural imaterial da cidade, é uma vitória, não só do funk, mas de todos aqueles que produzem cultura e são marginalizados pela condição social, geográfica e racial”, ressalta a vereadora, acrescentando que a medida também vai no sentido de reverter o processo de estigmatização do funk e das culturas identificadas com a juventude negra das periferias.
Para Jefferson Chaves, de 28 anos, o Cebolinha do Passinho, a lei só vem ampliar para a cidade inteira o reconhecimento de que a dança já tinha nas favelas e bairros populares cariocas. “Já era patrimônio antes da lei, porque o passinho acontece todos os dias. Está acontecendo agora. O poder público faz apenas a obrigação dele”, opina Chaves, que se apresenta como o mais antigo dançarino do estilo em atividade.
Parte da cultura funk — onde o Brasil tem escutado a voz da juventude negra há algumas décadas —, o passinho perdeu personagens importantes, levados cedo pela violência. O episódio mais conhecido foi o de Gualter Damasceno Rocha, o Gambá, morto aos 22 anos. O “Rei do Passinho” foi assassinado em 2012, no bairro de Bonsucesso, quando voltava de um baile de ano novo.
“Até hoje é um vazio”, desabafa Jefferson, que batizou a filha de Nicole Gualter, em homenagem ao amigo. “Como pode? Por que aconteceu?”, questiona se referindo à banalidade do crime, ocorrido após uma discussão em um posto de gasolina.
Segundo o escritor e produtor cultural Julio Ludemir, envolvido há alguns anos com a cena do Passinho no Rio, o assassinato de Gualter tem algumas explicações, mas uma é a principal: “o que ameaça meninos e meninas como o Gambá é o racismo”. “Ele foi tratado com uma violência que só é aplicada a um jovem negro. Não bastasse isso, após a morte, Gambá continuou a ser criminalizado pelo racismo”, lembra Ludemir, que foi um dos responsáveis pela criação da Batalha do Passinho, evento que se tornou uma modalidade competitiva de praticar a dança.
Os dançarinos mais antigos consideram Gualter uma espécie de precursor deste movimento de reconhecimento do Passinho, se destacando também por sua maneira de dançar. “Graças a ele ganhamos visibilidade, por que ele fez parte do grupo que foi para a TV pela primeira vez e possibilitou, de certa forma, que todo mundo visse o Passinho como o que ele é: uma arte”, lembra o dançarino Iguinho Pontes, de 26.
Iguinho explica que a brecha que Gambá ajudou a abrir deu frutos, como o reconhecimento do passinho pelo Sindicato dos Profissionais de Dança do Rio, há três anos, quando os jovens, eles próprios, tiveram que oficializar a história do estilo e identificar seus fundadores no processo de formalização.
“O Passinho hoje tem um registro profissional e podemos defender nossos artistas. Estamos caminhado para nos estruturarmos e temos um grupo, ‘Os Fazedores do Passinho’. Leis como esta podem ajudar, porque dificultam que outras pessoas se apropriem da manifestação, deixando de fora os jovens e as comunidades que fazem”, avalia Iguinho.
O Dream Team do Passinho é um dos apoiadores da campanha #VidasNegras, pelo fim da violência contra a juventude negra, da ONU Brasil. A campanha apoia todas as iniciativas dedicadas a valorizar as vidas dos jovens negros brasileiros, que têm hoje quase três vezes mais chances de serem assassinados em comparação com os brancos na mesma faixa etária.
Rafael Mike comentou, em nome do grupo, a nova lei municipal. Para ele, este é mais um reconhecimento de que o estilo que veio das favelas cariocas ganhou o mundo. “Esse estilo é uma realidade no Rio e está além do baile, dos vídeos no YouTube e das esquinas das favelas onde, em qualquer hora, você encontra uma moleca ou um moleque dançando”.
Mike também lembrou Gualter e sua importância para o passinho. “Existe o passinho antes e depois dele. Qualquer dançarino conhece essa história! Esse país é uma máquina de matar preto”, lamenta. “Além de ter virado saudade, virou estética”, diz.