Somente nos primeiros seis meses deste ano, o Rio de Janeiro teve oficialmente 766 homicídios em decorrência de intervenção policial, de acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP). Isso significa que, no período, de cada dez mortes violentas, duas envolveram a ação de agentes do Estado.
Imagens de celular ou dos próprios veículos policiais, flagrando homicídios praticados por quem deveria garantir a vida, somam-se às da câmera de “Auto de Resistência”. Esta revela, de um lado, as consequências devastadoras das perdas precoces para as famílias e, de outro, a luta por Justiça.
No Dia Internacional da Não Violência, lembrado na terça-feira (2), a exibição do documentário, na Casa da ONU, em Brasília (DF), contou com a presença de uma das diretoras, Natasha Neri, e da ativista Maria Dalva da Silva, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência. Dalva teve seu filho, Thiago Correia da Silva, assassinado aos 19 anos, durante uma operação no Morro do Borel, zona norte do Rio de Janeiro, em 2003.
Da sessão promovida pela campanha Vidas Negras participaram representantes de instituições públicas, organizações da sociedade civil, estudantes, além de autoridades e equipes de agências do Sistema ONU.
Parte do grupo de debatedores do evento, Dalva apoia familiares de jovens assassinados a reconhecer seus direitos e exigir que sejam respeitados. “Muitas mães acham que os filhos morreram e acabou. A gente mostra que não. Os filhos delas tinham direito de viver e elas também têm o direito de viver e lutar por Justiça”, declarou.
“E se elas não têm condições, a gente toma a frente: a gente denuncia, a gente aceita o tempo (de luto) delas, mas sabemos que uma hora elas voltam pra luta. Estamos ali para acolher, dar o ombro, chorar junto. Infelizmente a violência é muito grande”, afirmou.
“Auto de Resistência” dá rosto aos números da violência. As estatísticas indicam que, no Brasil, um jovem negro tem o triplo de chances de ser assassinado na comparação com um jovem branco. O filme também apresenta quem são as “vítimas ocultas” — mulheres negras, pobres, com pouco acesso à Justiça, muitas vezes em meio ao choque de um evento que mudará suas vidas para sempre.
Embora o documentário retrate casos do Rio, para a diretora, as famílias acabam vivenciando situações semelhantes em todo o Brasil. Na visão de Neri, o filme também pode ser usado para fortalecer os movimentos de familiares em sua busca por justiça.
“O documentário é uma ferramenta que os familiares podem utilizar na luta pela redução da letalidade das polícias. Acompanhamos, momentos depois da morte, uma verdadeira peregrinação dos familiares por todas as instituições públicas do sistema de Justiça, mostrando um pouco do que as pessoas desconhecem. Porque, em geral, os casos saem na mídia quando estão quentes e depois ficam esquecidos”, disse a cineasta, que com a obra ganhou o prêmio de Melhor Documentário Nacional de Longa ou Média-Metragem no Festival É Tudo Verdade.
O cine debate contou ainda com a presença do coordenador-residente da ONU, Niky Fabiancic. Ele destacou que a violência contra a juventude negra continua a demandar compromissos de todos os setores da sociedade e do poder público.
“Infelizmente, este é um fenômeno que, enquanto se agrava, parece não receber a atenção merecida. Acredito que mais do que uma sessão de cinema, o filme e as nossas convidadas proporcionaram compreender melhor parte de um dos maiores desafios do país: superar o racismo e a violência que dele decorre”, comentou Fabiancic.
O coordenador-residente ainda reforçou uma das principais mensagens da campanha Vidas Negras, lembrando que quando a vida da juventude negra é valorizada, toda a sociedade sai ganhando.