Produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Atlas da Violência 2018 confirmou a tendência histórica de agravamento do quadro de homicídios no Brasil — principalmente entre jovens e negros. Os assassinatos responderam por mais que a metade (56,5%) das causas de morte entre homens de 15 a 29 anos. O número global de 33.590 jovens vítimas de homicídio aumentou 7,4% em relação ao ano anterior.
Outro dado preocupante do Atlas é a desigualdade na distribuição dos assassinatos entre negros e brancos. Enquanto a taxa de homicídios entre os primeiros é de 40,2 por 100 mil habitantes, no segundo grupo ela fica em 16 por 100 mil. De todas as vítimas do crime a cada ano no país, 71,5% são negras.
“É como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos”, ressalta o texto do Atlas. O Ipea e o FBSP informam ainda que os dados atualizados infelizmente não trouxeram surpresas para os pesquisadores, os quais acrescentam que o Brasil tem produzido respostas insuficientes ao problema em termos de políticas públicas.
Uma das novidades da edição 2018 do documento é um capítulo dedicado a chamar atenção para o potencial dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e suas metas nas estratégias de redução da violência letal. Em geral, os ODS estabelecem diretrizes a serem alcançadas pelos países nos próximos 12 anos, daí o título de Agenda 2030. O plano de ação internacional oferece parâmetros que permitem inclusive ao Brasil verificar se está ou não conseguindo superar desafios em várias áreas como, por exemplo, a de segurança pública.
O ODS mais importante em relação ao tema é o de número 16 (são 17 no total), que trata de caminhos para promover sociedades mais pacíficas e inclusivas. Sua primeira meta é reduzir a violência e a mortalidade decorrente dela. O Atlas 2018, por sua vez, mostra que o Brasil acaba de bater seu próprio recorde em sentido contrário ao da meta 1 do ODS 16: pela primeira vez ultrapassou o patamar de 30 homicídios por 100 mil habitantes.
Segundo o coordenador de Estudos e Políticas de Estado e Instituições (Diest), do Ipea, Helder Sant’Ana Ferreira, responsável pelo capítulo que relaciona os ODS à redução da violência letal, são vários dos objetivos da Agenda 2030 que podem contribuir na redução da violência se perseguidos e cumpridos.
“O problema dos homicídios precisa ser priorizado, já que a área de segurança lida com questões como o tráfico e o crime organizado, por exemplo. O Atlas traz, de um lado, essa necessidade de colocar os homicídios no centro, mas de outro, fala neste capítulo de ODS de temas que ampliam o debate sobre melhoria das condições sociais, o que é decisivo na prevenção dos assassinatos”, observa Ferreira.
Para as Nações Unidas, no entanto, a agenda global pode e deve ser adaptada aos contextos e desafios dos países. A líder do Grupo Temático de Gênero Raça e Etnia e representante de ONU Mulheres Brasil, Nadine Gasman, enfatiza que o mesmo vale para a questão dos homicídios no país.
“O perfil das vítimas é extremamente bem definido: jovens, negros, oriundos das periferias, com baixa escolaridade e inserção precária no mercado de trabalho. Portanto, não há como atingir as metas e objetivos relacionados ao ODS de promoção de uma sociedade mais pacífica e inclusiva se não nos dedicarmos com prioridade ao problema do racismo que também pesa nesta situação de distribuição desigual da violência entre negros e brancos no Brasil”, analisa.
A ONU Mulheres lidera um dos grupos das Nações Unidas no Brasil responsáveis pela campanha #VidasNegras — pelo fim da violência contra a juventude negra. Entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23%, enquanto caiu para não negros em 6,8%.
Agenda 2030 nos territórios
Ao lado de raça e da faixa etária, outra característica importante da dinâmica dos homicídios no Brasil é a concentração territorial dos assassinatos. Das 27 unidades da federação, 11 apresentaram crescimento gradativo da violência letal, dez delas no Norte e Nordeste, regiões onde estão situados todos os estados que experimentaram um crescimento superior a 80% na taxa de homicídios, entre 2006 e 2016.
De acordo com Helder Sant’Ana Ferreira, a questão da concentração das mortes violentas fica ainda mais aguda à medida em que se olha mais de perto. “Nestes estados, há concentração nos municípios e nos municípios, com certeza, em uma parte ou em partes deles”, revela o representante do Ipea, que lamenta não ter acesso à variável “bairro”.
Mas há quem já esteja trabalhando com a Agenda 2030 para enfrentar a violência, de olho em fatores como o perfil das vítimas e o território. Um exemplo é o da Casa Fluminense, que, como afirma seu coordenador de mobilização e incidência, Douglas Almeida, “quer aproximar a agenda global da agenda local”, isto é, acompanhar em escala local os ODS.
“Uma meta que apontamos na Agenda para o horizonte 2030 e que dialoga com a primeira do ODS 16 é toda Região Metropolitana abaixo do nível de homicídios considerado epidêmico pela OMS (10/100mil)”, explica.
Ainda de acordo com Almeida, os números absolutos de homicídios — que aumentaram no Rio — são bastante desiguais se considerados os territórios: em 2017, a Baixada Fluminense teve taxa de homicídios de 60,7 a cada 100 mil, duas vezes mais que a registrada na capital. “As evidências revelam que além de territórios-chave, a violência cotidiana também faz dos corpos e histórias de jovens negros suas principais vítimas”, nota.
Em âmbito local ou nacional, ter como parâmetros os ODS — e, em especial, aqueles relacionados à redução da violência —, é uma estratégia promissora. Está é a opinião de Eduardo Pazinato, analista de programa do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). “A referência expressa ao ODS 16 é sintomática de uma aposta dos envolvidos no cumprimento de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e outros países vinculados às Nações Unidas, em prol de priorizar a prevenção das violências, com padrões e métricas de comparabilidade referendados pela ONU”, diz.
Dados, experiências locais e parâmetros internacionais, tudo converge para um só caminho: valorizar a vida, priorizando a ampliação das oportunidades para aqueles que têm sido mais penalizados, sem esquecer dos locais de maior incidência — tanto dos homicídios quanto dos efeitos da desigualdade.